X
top

ESPREITAR A OUTRAS JANELAS

ESPREITAR
A OUTRAS JANELAS

ROTEIRO: PATRIMÓNIO  |  SANDRA NOBRE STORYTELLER  |  JOANA RAY ILUSTRADORA

Lisboa não desfila à janela enquanto me desloco, como se fizesse uma viagem nocturna com a cortina fechada. Entre uma e outra estação, um feixe de luz, o assombro, um museu de diferentes estilos, salas amplas, em que a arquitectura se cruza com a pintura, com a escultura, com as palavras. A cada dia descubro uma nova paragem, um novo artista, e, quando subo à superfície, estou aos pés de uma catedral, de um museu, de uma igreja. Todos os guias sugerem um passeio no eléctrico 28, mas um amigo de longa data deu-me a conhecer um poema que diz: “Não, não vou por aí! Só vou por onde me levam os meus próprios passos…” (Cântico Negro, José Régio) e fiz desse o meu lema na cidade, tal como na vida.

Conhecer Lisboa seguindo as diferentes linhas do Metropolitano é, por si só, uma experiência cultural. Encontro Siza Vieira, um dos maiores da arquitectura mundial, na Baixa-Chiado (linha azul). Mergulho no mundo colorido do artista plástico José de Guimarães, em Carnide (linha azul). Admiro as composições geometrizadas que celebram o casal Arpad Szenes e Vieira da Silva, reproduzidos em azulejos, por outro dos grandes da pintura e da cerâmica, Manuel Cargaleiro, no Rato (linha amarela). Sigo os passos apressados do coelho saído de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, desenhado pelo surrealista António Dacosta e interpretado por Pedro Morais. Não me canso das palavras de Almada Negreiros inscritas no Saldanha (linha vermelha): “Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade”.
Salve-se quem puder, à superfície, entre tuk-tuks sem regras, eléctricos vagarosos, carros mal parados, trotinetes vadias. Antes um cacilheiro e ver a cidade ao ritmo do Tejo, como se dedilhasse as cordas de uma guitarra portuguesa.

Lisboa tem poesia nas entrelinhas. Nas ruelas apertadas dos bairros históricos com roupa pendurada ao vento e velhos moradores à janela. Em tudo o que a vista alcança, desde os miradouros no alto das suas sete colinas aos traços arquitectónicos que, ora contornam a cúpula do Panteão Nacional, morada das mais ilustres figuras portuguesas – de Luís de Camões (imortalizado pela sua obra Os Lusíadas) e Vasco da Gama (navegador português que descobriu o caminho marítimo para a Índia) a Amália Rodrigues (rainha do fado) e Eusébio (histórico do futebol com a alcunha de “Pantera Negra”) –, ora seguem as curvas modernas, à beira-rio, do MAAT-Museu de Arte, Arquitectura e Tecnologia.

Do património histórico que relembra o terramoto de 1755, como a Igreja de São Domingos, na Praça do Rossio, memória viva da destruição, marcada, posteriormente, por um incêndio em 1954, que a pintou de negro no interaor, ou as ruínas do Convento do Carmo, aquela que foi a principal igreja gótica da capital, hoje Museu Arqueológico do Carmo, palco tantas vezes de espectáculos, à herança natural, do Jardim Botânico, que integra o Museu de História Natural e da Ciência, onde se reúnem mais de 140 anos de história e de dedicação à investigação da botânica, ou a Estufa Fria, concebida, no início do século XX, para albergar espécies vegetais oriundas do mundo inteiro, Lisboa não cabe toda numa janela. São precisas muitas viagens para a descobrir. Não, não vou por aí! Sento-me para uma bica com Fernando Pessoa, na Brasileira, enquanto descubro o seu Lisboa – O que o Turista Deve Ver, outra janela, entreaberta, à espera de olhares curiosos e espíritos aventureiros.